O pensamento único da televisão brasileira
Laurindo Leal Filho, Brasil
Profesor de la Universidad de Sao Paulo, asesor de prensa del Rector de la Universidad Católica, autor de varios libros de investigación sobre los problemas de la televisión
Já está ficando cansativo ouvir de figuras importantes da televisão
brasileira que a solução para o problema da qualidade da programação é o
controle remoto ou o botão de desligar. Alguns chegam até a afirmar que a
tevê seria apenas um eletrodoméstico e seu papel cultural comparável a uma
janela. Dess forma, o problema estaria na paisagem e não na janela. Como se
a televisão não escolhesse entre milhares de paisagens aquelas que,
segundo os critérios dos produtores, servem para dar mais audiência. Ou
pior, não forjasse, em algumas ocasiões, situações que nem na paisagem
estão.
Mudar de canal não adianta. Na televisão aberta, única possibilidade
de acesso à informação e ao entretenimento da maioria absoluta da
população brasileira, muda-se de canal para ver a mesma coisa. Desligar
a televisão, então nem pensar. Trata-se de um serviço público como outro
qualquer. Não é porque um desses serviços, como o transporte ou o
fornecimento de energia, falhe que nós vamos abrir mão dele. Vamos
reclamar e exigir o seu correto funcionamento. Com a tevê é a mesma
coisa. Trata-se de um serviço público de caráter universal e deve, por
isso, atender toda a sociedade.
Outro argumento a favor do descontrole da televisão vem dos fascinados
pelas novas tecnologias. Elas nos conduziriam ao melhor dos mundos e
isso ocorreria quando, em casa, diante de milhares de ofertas, o
telespectador pudesse montar a sua própria programação a partir do seu
livre-arbítrio. É até possível que se chegue perto disso nos países do
capitalismo central, com baixa concentração de renda e alta taxa de
escolarização. Na periferia do sistema a tendência é oposta. A televisão
por assinatura está ampliando o fosso que divide a população minoritária
de alta renda, da grande maioria sem recursos para ingressar no mundo do
cabo ou do satélite. No Brasil já é possível se falar em duas
televisões: a dos ricos, segmentada e um pouco mais diversificada e a
dos pobres, aberta e monocórdia.
Mudar de canal, desligar a tevê ou aguardar o paraíso da
democratização tecnológica são falácias que tentam encobrir o que
realmente está por trás do debate em torno da qualidade da programação:
o modelo institucional adotado pela televisão no Brasil. Herdeira do
rádio, a televisão se ergueu no país como um grande empreendimento
comercial, distante dos idéais de serviço público consagrados na Europa.
No Brasil, os concessionários se arvoram em donos dos canais, achando-se no
direito de colocar no ar aquilo que bem entendam, o que lhes dá mais
dinheiro. Sem outro modelo como referência, carente de alternativas de
informação e entretedimento, o telespectador brasileiro mostra-se
apático diante de um serviço público que ele mesmo, como mostram várias
pesquisas, considera ruim.
Uma combinação histórica perversa entre o neoliberalismo e os
fantasmas da censura contribuiu ainda mais para piorar a situação
brasileira. O debate sobre a qualidade da programação ocorre num momento
em que o mercado foi elevado a condição de juiz supremo da vontade
popular, como se fora dele não houvesse vida. Então vamos dar o que o
povo quer, dizem os concessionários dos canais de televisão. E, para
eles, só o mercado é capaz de revelar preferências. Ao mesmo tempo, a
lembrança da censura é o espantalho erguido pelos mesmos concessionários
para evitar qualquer discussão em torno do que eles colocam no ar.
Escondem como podem a existência de controles públicos das programações
em paises de democracias seculares..
Mercado e censura são usados como truques para escamotear a essência
da discussão que é o caráter público das concessões. O conceito de
serviço público pressupõe o atendimento de necessidades fundamentais da
população. Dessa forma, os serviços de rádio e televisão se equiparariam
aos de água, telefone, energia ou correio, por exemplo. E teriam duas
vertentes básicas: a referente a cidadania, procurando elevar as
condições de participação dos cidadãos na vida democrática e a da
cultura servindo como disseminadores da riqueza lingüística, espiritual,
estética e ética de povos e nações.
Para executar com autonomia esse serviço, as emissoras devem manter
distância das interferências do Estado e dos negócios. Por isso, em
praticamente todos os países da Europa Ocidental, na Austrália, no
Japão, na Nova Zelândia, parte do financiamento das emissoras públicas
de televisão vem da taxa cobrada dos telespectadores. Mas mesmo as
demais, mantidas apenas pela propaganda, se submetem ao controle
público.
Os mecanismos existentes para isso variam de país para país. Na
França, por exemplo, a responsabilidade cabe ao Conselho Superior de
Audiovisual, formado por nove membros, indicados pelo Presidente da
República, pelo presidente do Senado e pelo presidente da Assembléia
Nacional; na Itália existe o ³Gerente della Editoria², uma espécie de
defensor público nomeado pelo Parlamento, além do código de
auto-regulamentação implantado recentemente; no Reino Unido a tarefa é
dividida entre os Conselhos Diretores da BBC, da ITC (sigla em inglês da
Independent Television Commission) e da British Standards Comission,
criada pelo Parlamento com mandato para acompanhar o nível das
programações e servir de canal de comunicação entre os telespectadores e
as emissoras.
O poder de sanção desses órgãos resulta em multas como a de 800 mil
dólares que a ITC aplicou ao Canal 4 britânico por ter apresentado, num
seriado, às cinco da tarde, cena sugerindo incesto entre dois irmãos.
Segundo o órgão regulador "as cenas eram descabidas para o início da
noite, horário em que muitas crianças estão assistindo televisão" .Para
manter a série no ar, a emissora pagou a multa que representa
aproximadamente 3% do seu faturamento e apresentou um pedido formal de
desculpas aos telespectadores. Na França, foi de 5,9 milhões de dólares
a multa imposta pelo Conselho de Audiovisual à TF-1 por ter plagiado um
programa da France 2.
Mas além da qualidade, a televisão tem a obrigação de oferecer
programações diversificadas e complementares. No Brasil, quando uma
emissora encontra uma fórmula de sucesso, com grande audiência, logo é
copiada pelas concorrentes, tirando do telespectador qualquer tipo de
escolha. Para evitar situações como essas, o órgão regulador da televisão
britânica tem poderes para interferir nas grades de programação das
emissoras. Ele evita, por exemplo, que programas semelhantes sejam
colocados no ar no mesmo horário e impede que os índices de audiência
das emissoras ultrapassem uma casa em torno dos 50%. Quando isso tende a
ocorrer, alterações nas grades de programação freiam a possibilidade de
uma hegemonia absoluta de um canal sobre os demais.
O argumento de que as programações são determinadas pela audiência é
falacioso. Ao buscar índices cada vez mais elevados as emissoras estão
apenas oferecendo produtos para serem consumidos no mercado. Ao mercado,
por definição, só se oferece o que é vendável. E quem disse que só o que
é vendável tem qualidade? Existem inúmeros produtos culturais valiosos
que não são oferecidos aos telespectadores apenas por não encontrarem
espaço no mercado.
E mais, como lembra bem o sociólogo francês Pierre Bourdieu ³pode-se e
deve-se lutar contra o índice de audiência em nome da democracia. Isso
parece muito paradoxal porque as pessoas que defendem o reino do índice
de audiência pretendem que não há nada mais democrático. O índice de
audiência é a sanção do mercado, da economia, isto é, de uma legalidade
externa e puramente comercial. A televisão regida pelo índice de
audiência contribui para exercer sobre o consumidor supostamente livre e
esclarecido as pressões de mercado, que não têm nada da expressão
democrática de uma opinião coletiva esclarecida, racional, de uma razãoº
pública, como querem fazer os demagogos cínicos².
A discussão sobre a qualidade da programação, como se vê, é só a
aparência de um problema institucional mais profundo. O mercado
televisivo é igual a qualquer outro. Livre de controle, corre solto em
direção ao monopólio ou para a formação de oligopólios. Se com as
fábricas de pneus ou de cervejas os danos são apenas econômicos, com a
televisão eles vão além ao unificar idéias, forçar consensos, homogeinizar
gostos e valores, romper com a democracia.
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